A promessa do cânhamo na cura de um mundo frágil: energia, alimentação, habitação, ambiente

Se, como disse o Secretário-Geral da ONU António Guterres, a pandemia da COVID-19 foi “um raio X que revelou fraturas no frágil esqueleto das sociedades que construímos”, e se a mudança climática é uma das principais causas dessas fissuras, então a invasão russa da Ucrânia é como se os analgésicos tivessem sido eliminados da equação.

Todas as questões de dependência energética, segurança alimentar e crise habitacional já existiam, mas de forma algo distante, vagamente sentida na neblina do aumento dos preços dos combustíveis, nos supermercados sobrelotados e nas imagens de estranhos espalhados pelas calçadas. Ao olharmos agora para os problemas graves que se aproximam, precisamos urgentemente de identificar soluções o mais rapidamente possível.

Como é que resolvemos estas questões aparentemente desconexas entre si? Acredito que não estão de todo desligadas e que as soluções podem ser encontradas num único plano assente no cânhamo industrial.

Segurança alimentar

Abordar a segurança alimentar é extremamente importante. Apesar do número crescente de histórias de agricultores que contestam os preços insustentáveis do mercado, todos concordamos com a ideia de que os alimentos devem ser baratos e continuamente abastecidos. É agora evidente que muitos dos alimentos que consideramos básicos, como o pão e as rações que nutrem as nossas outras fontes alimentares, especialmente animais destinados a produtos de carne, têm origem na Rússia ou Ucrânia!

O fluxo de alimentos e combustíveis, perturbado pela nefasta invasão da Ucrânia, está a afetar os custos deste sistema insustentável e a produção de alimentos em todo o lado.

Hoje em dia, muitas pessoas já conhecem os alimentos à base de cânhamo, mas existem ainda muitas maneiras de o cânhamo poder ser utilizado na transição para uma dieta com menos carne, garantindo refeições altamente nutritivas.

As colheitas certas

Para solucionar as questões do aumento dos custos dos nitratos e da perda de fertilidade de muitas propriedades agrícolas no ocidente, precisamos de culturas que não exijam quantidades elevadas de fertilizantes e que possam melhorar a qualidade da terra para futuras culturas. Isto acontece com o cânhamo industrial. O cânhamo pode ser cultivado com resíduos humanos, que literalmente estamos a deitar pela sanita abaixo.

Embora estes resíduos tenham de ser filtrados em relação a microplásticos e elementos tóxicos que possam estar presentes, o processamento de resíduos animais e humanos com digestores anaeróbios pode constituir não só um fertilizante seguro, mas também uma fonte de energia na forma de gás, que é tão necessário.

O cânhamo oferece também uma cultura propícia para iniciar o regresso à agricultura de plantio, atualmente promovida pelos governos como reação à guerra na Ucrânia. O seu crescimento extremamente rápido sufoca ervas daninhas concorrentes, reduz o uso de herbicidas e melhora a terra para futuras colheitas, especialmente trigo ou cevada no inverno, ou culturas de cobertura verde semeadas logo após a colheita do cânhamo.

Habitação saudável

Providenciar habitação para as nossas populações jovens enquanto tentam iniciar os seus estudos ou carreiras nas cidades, ou satisfazer o desejo das famílias jovens de ter uma primeira habitação confortável, não parece ser possível no presente. Aparentemente há falta de habitação na maioria das cidades. O facto de tantas das casas disponíveis serem também ineficientes do ponto de vista energético, caras, ou pouco saudáveis para habitar, é um triste reflexo dos atuais padrões de construção.

Os materiais extraídos da planta de cânhamo podem ser utilizados como alternativa de fibra natural aos produtos de isolamento de lã mineral e espuma plástica, ou então como agregado no caso do hempcrete. Estes materiais apresentam vários comportamentos positivos, atenuando as variações de calor dentro e fora de um edifício, ao mesmo tempo que regulam a humidade. Isto é especialmente evidente no hempcrete, que pode ser facilmente moldado para proporcionar uma manta térmica à prova de fogo numa estrutura resistente ao bolor e isenta de gases tóxicos.

Estes materiais respiratórios, acumuladores de calor e isolantes, estão agora a ser usados para melhorar de forma saudável as estruturas existentes, ou novos edifícios em todo o mundo. Preformados em blocos, placas ou painéis de partículas, os materiais à base de cânhamo estão também a ser incorporados em sistemas de habitação modular.

Investimento é necessário

Abordar todas esta questão com o cultivo de uma única planta pode parecer ideal. Mas, sem instalações essenciais para o processamento primário, não há mercado para a matéria-prima. O processo de decorticação e separação de material, ou a separação da palha para extrair as fibras bast e as partículas do núcleo, conhecidas como “hurds”, só é possível do ponto de vista comercial quando existem fábricas para fazer esse trabalho. Isto implicaria um local no centro da área de plantio mais adequada de uma região, que pudesse servir uma comunidade de agricultores que cultivam cânhamo enquanto parte de um sistema sustentável de rotação de culturas.

É possível ter uma fábrica onde numa extremidade entra um fardo de cânhamo e do outro lado saem tijolos ou casas feitas com painéis modulares. A fábrica precisaria de um investimento de €3.000.000-€30.000.000, dependendo de quantos produtos adicionais seriam produzidos nessas instalações. Isto não é nada se incluirmos no saldo financeiro o emprego de 8-60 pessoas, havendo também necessidade de mão-de-obra adicional para a entrega e instalação do produto.

Junte-se a isto tanto o sequestro e redução de carbono proporcionados pelos materiais. O processo seria considerado “net zero” do ponto de vista das emissões, semelhante a muitas das casas de cânhamo que estão a ser construídas internacionalmente.

Em tempos de “emergência”, as necessidades básicas, como alimentação e abrigo, tornam-se fundamentais. E, havendo novos sistemas capazes de satisfazer essas necessidades, devemos fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para investir nesta cultura vital, de forma a colher as oportunidades.