‘O cânhamo pode fazer maravilhas pela agricultura na América Latina’

ENTREVISTA: Lorenzo Rolim da Silva é consultor de empresas internacionais dedicadas ao desenvolvimento de projetos de canábis medicinal e cânhamo industrial, estando afiliado à australiana Rhizo Sciences. Em 2015, iniciou a sua carreira na canábis na Califórnia, regressando depois ao Brasil para trabalhar na primeira empresa de canábis medicinal sediada no país, em parceria com a Bedrocan Brasil. Após alguns anos de consultoria internacional, Rolim da Silva investiu no desenvolvimento de tecnologias para o processamento de fibras. É presidente e fundador da recém-formada Associação Latino-americana de Cânhamo Industrial.

HempToday: Qual foi o impulso para constituir a nova associação latino-americana do cânhamo?

Lorenzo Rolim da Silva: Notámos que a América Latina precisava de uma organização que falasse em nome dos intervenientes nesta indústria. Sabemos que todas as outras grandes regiões de produção de cânhamo (Europa, Canadá, EUA, China) têm associações da indústria do cânhamo, e que estas são fundamentais para o desenvolvimento apropriado de regulamentos e leis locais. E reparámos também que a América Latina como um todo estava muito atrasada nesse campo, quando comparada às outras regiões. O nosso objetivo é sermos a voz unida da indústria do cânhamo em toda a América Latina.

HT: Quais são os desafios comuns ao cânhamo na América Latina e nas Caraíbas?

LR: A ausência de regulamentos sensatos para a produção correta do cânhamo. Há muitos países que proíbem por completo o cultivo de cânhamo e canábis (como o Brasil) e muitos outros que têm quadros regulamentares limitados, criando várias barreiras e obstáculos para o desenvolvimento da indústria. Muitas pessoas na nossa região continuam sem saber o que é o cânhamo e a canábis. O preconceito está a travar o desenvolvimento daquilo que poderia ser um enorme impulso económico na América Latina, extremamente necessário nestes tempos difíceis.

HT: Quais são os países da América Latina que estão a assumir posições dianteiras na indústria do cânhamo?

LR: A Colômbia e o Uruguai encontram-se já alguns anos à frente dos restantes em termos de produção. Foram pioneiros na regulação da produção de canábis e no desenvolvimento da indústria local, muitas vezes com investimento estrangeiro. Ambos os países centraram esforços nas indústrias farmacêuticas e medicinais, mas em breve veremos uma utilização do cânhamo industrial para outros fins, creio. Quando houver legislação abrangente em toda a região, é provável que os atuais líderes agrícolas assumam rapidamente o comando. Refiro-me ao Brasil e à Argentina no sul e ao México no norte. Num futuro próximo, podemos também ver cenários interessantes no Chile, Peru e Paraguai.

HT: Qual é o potencial exportador de produtos de cânhamo da América Latina? Quais são os países que têm as melhores oportunidades neste campo? E com que tipo de produtos?

LR: A maioria das oportunidades relacionadas com o cânhamo na América Latina estão até agora centradas na indústria medicinal. Vemos a exportação grossista de biomassa, flores, extratos e cosméticos, principalmente de origem colombiana e uruguaia. Mas o potencial futuro é muito maior, a meu ver. O Brasil é líder na indústria global de celulose e papel, que é sobretudo um mercado de exportação. O país pode beneficiar muito com a produção local de cânhamo em grande escala. Além disso, muitas cadeias de abastecimento alimentar poderiam aproveitar o valor acrescentado dos grãos de cânhamo na região, tendo em conta que estes países são líderes na produção de aves, suínos, bovinos, entre outros. Olho para o cânhamo como uma cultura que acrescentará grande valor à já existente oferta de exportação de outros produtos.

HT: Como pode o cânhamo ser uma força evolutiva no setor agrícola em toda a região? O que é necessário para colocar em prática programas construtivos para os agricultores que pretendem cultivar cânhamo?

LR: O cânhamo pode fazer maravilhas pela agricultura da América Latina. Os atuais modelos experimentais revelam vantagens para pequenos e grandes agricultores. O problema é a enorme falta de conhecimento sobre o cânhamo. O foco deve passar pela educação dos agricultores, com materiais nas línguas nativas; precisamos de chegar aos agricultores em regiões isoladas, temos de começar a identificar os melhores produtos potencialmente produzidos pelo cânhamo em cada região. Por exemplo, olho para a Colômbia, Equador e Peru como bons exemplos de condições climáticas que sustentam a produção de flores e biomassa de alta qualidade. Por outro lado, países como o Paraguai, Uruguai, Brasil e Argentina têm regiões com um clima ideal para a produção de grãos e fibras, já para não referir as cadeias de abastecimento estabelecidas. Com o tempo, a indústria irá ajustar-se e estas possibilidades serão transformadas em ganhos concretos.

HT: O cultivo de cânhamo no setor alimentar parece uma opção lógica para os interessados da América Latina. Qual o potencial do cultivo e produção alimentar do cânhamo?

LR: Enorme. A região é já responsável pela produção da maior parte da soja, milho, algodão, café, trigo e arroz, frutas e vegetais a nível global, já para não falar da indústria pecuária que também está entre as maiores do mundo no gado bovino, suíno e avícola, como disse anteriormente. Tendo em conta o valor nutricional dos grãos de cânhamo, com elevadas quantidades de proteínas e gorduras ómega, e o facto de a planta exigir pouca água quando comparada a outras culturas, é fácil perceber como o cânhamo se tornará uma das melhores opções para a alimentação animal na nossa região.

Dito isto, não falámos ainda sequer do cânhamo para consumo humano, algo atualmente muito raro em toda a nossa região. No Brasil, por exemplo, não é possível encontrar alimentos de cânhamo em mercearias e supermercados. Falamos dum mercado de 210 milhões de pessoas que jamais tiveram qualquer contacto com estes notáveis produtos. Enquanto isso, a maioria das pessoas na Europa e América do Norte já está familiarizada.

HT: Como encara os limites de THC em toda a região, considerando a tendência que aponta para 1.0% de THC – algo que os países da América Latina parecem estar a adotar?

LR: É uma abordagem muito bem-vinda e os dois países pioneiros da nossa região decidiram adotá-la: Uruguai e Colômbia. Há também um limite de 0.5% no Paraguai. Isto é importante dados os climas tropicais da nossa região, que podem aumentar mais facilmente o teor de THC nas plantas de cânhamo.

Com a associação, esperamos que as autoridades reguladoras dos países comuniquem e troquem informações para que todos compreendam esta necessidade, facilitando a circulação de produtos na região e estimulando as oportunidades de comércio bilateral entre países. Acredito que globalmente já deveríamos ter compreendido o que implica um limite de 1.0% nos níveis de THC. Este nível não pode ser considerado prejudicial ou perigoso e limites inferiores apenas criam mais restrições na indústria. Espero que a Europa e a América do Norte sigam esta tendência num futuro próximo.

HT: Notámos que tem feito algum trabalho em países africanos. O que nos pode dizer sobre o potencial da indústria do cânhamo no Lesoto, Zimbabué e África do Sul?

LR: Sim, tive recentemente a sorte de estabelecer pontes com pessoas dessa região do mundo. África, tal como a América Latina, é uma enorme oportunidade à espera de ser desenvolvida. As pessoas destes países estão prontas para a mudança e muitas vezes são bloqueadas por péssimos regulamentos e por especulações selvagens nos mercados financeiros. Se as pessoas estiverem dispostas a pôr o pé na porta e a trabalhar arduamente, há enormes oportunidades na região.

Considero que África e a América Latina poderão, num futuro próximo, competir taco a taco com a Europa e a América do Norte na indústria do cânhamo. Podemos competir nos preços, nas terras disponíveis, nos recursos de água doce; e temos um clima que permite a produção agrícola durante o ano inteiro, o que beneficia os preços das mercadorias. Fizemo-lo uma vez com a soja e o milho, e podemos fazê-lo novamente com o cânhamo. Só precisamos de uma oportunidade.